Apenas por pessoas de alma já formada

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Melhores amigos

Estou caindo. Meus dedos escorregam da superfície. Eu já não tenho mais forças. Meu corpo pesa e a inércia não é mais possível. Uma sombra aparece. Pés se aproximam de meus dedos escorregadios, enquanto minhas pernas batem no ar. Peço ajuda para quem quer que seja a imagem escura sobre mim e ela, atendendo meu pedido de socorro, se ajoelha a milímetros de esmagar meus dedos com suas finas pernas. E então espero. Aguardo seu ato misericordioso, mas a sombra não faz nada além de me olhar. Isso mesmo. A sombra tem olhos e boca. E ela sorri. Satisfeita talvez com a posição em que estou? Peço ajuda novamente, mas ela não atende. Não ajuda um semelhante em apuros. A sombra me quer morto.
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"Por favor?", rogo mais uma vez. Nada acontece. Até que, observando melhor a sombra, com o desespero já clemente em meus olhos, finalmente reconheço a imagem escura sobre mim. Era ele. Aquele por quem aquela que eu matei me trocou. E agora, ciente de quem é a sombra sobre mim, eu não espero que me socorra. Pelo contrário, aguardo que seus pés esmaguem meus dedos, forçando minha fatal queda. Mas ele me surpreende. Ergue-me dali. Levanta-me, apenas para largar-me de novo no chão, segundos depois.
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- Eu quero ver seu rosto morto de perto. De tão longe do fundo do desfiladeiro, eu não terei o prazer de observar a sua lenta morte.
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Não há perdão em seus olhos. O vento intenso seca o sangue que eu provocara horas atrás com meus murros consecutivos, estancando os glóbulos vermelhos em sua face. Seus cabelos caem sobre as janelas de sua alma impiedosa. Face e corpo, ambos humilhantemente sujos. Posso quase rir de seu mortificante estado, mas eu próprio não devia estar em melhor situação. Pelo contrário, eu estava sem sombra de dúvida muito pior. Ele olha para o céu e parece sorrir:
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- As nuvens estão se dissipando. O céu começa a se abrir sob nós. Um belo dia para morrer, não?
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Eu não esperava um tom irônico em suas palavras, mas era assim que ele se dirigia a mim. E naquele momento, eu pude sentir algo parecido com orgulho. Que orgulho eu sentia de ver meu ex-melhor amigo finalmente evoluir. Ele era um exímio assassino agora, assim como eu sempre fui.
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- Importa-se se eu sentar? - ele sequer espera minha resposta (nem sei se, a essa altura, eu ainda sou capaz de falar). Ele senta e permanece parado. Apenas aguardando minha iminente morte? Quanto havia mudado nesses últimos dias. Essa foi a última imagem que tive dele e o último pensamento também. O quanto tudo havia mudado nesses últimos dias.
(continua)
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quinta-feira, 22 de abril de 2010

Segundos antes do fim

O veneno que aplicou em minha nuca, ao me beijar falsamente no rosto, agiu rápido. Deixou-me tonto. Meus pés tortos derraparam próximo a um desfiladeiro, mas não caí. Minhas mãos, em um ato de reflexo, agiram rápido. Meu corpo estava suspenso no ar e apenas meus dedos me impediam de cair. Sentia-me fraco, como se algo sugasse toda a energia vital de meu ser. Então, esse era o gosto de meu próprio veneno? Nada mais justo que morrer como ela. Será que ela me recepcionará nos portões do além? Acolher-me-á em seu braços da mesma maneira que eu o fiz segundos antes de sua morte? Eu não esperava mais nada além do anjo de face oculta que levaria minha alma dali. Eu já sentia seu bafo próximo de mim. Eu podia soltar os poucos dedos que me seguravam e apressar o fatídico minuto de minha queda, mas eu sempre fui um lutador. Eu iria me agarrar até o último segundo de vida. Confesso. Eu senti medo da morte. O assassino com medo de sua amiga.
(continua)
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quarta-feira, 21 de abril de 2010

A vingança

Então, o bote da cobra quem deu fui eu e não ele. O assassino não esperava tal atitude de mim. Ironia morrer com seu próprio veneno? Seria ele tão esperto a ponto de notar a morte ao seu lado, esperando apenas pelo momento certo para arrancar-lhe a vida? Segui seus passos trôpegos, embora eu também não estivesse em meu melhor estado. Mas me recuperaria, ao contrário dele que ficaria para sempre no mesmo estado: morto. O veneno que injetei em sua nuca fora o mesmo que ele usou para matar minha amada. Era mortal. Ele não sobreviveria. Eu consegui o que desejava, embora bem no fundo eu soubesse que isso nunca teria um fim, teria? Mesmo que estejamos todos mortos, não haverá um "...e foram felizes para sempre". A princesa de meu conto de fadas já não está mais aqui.
(continua)
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sábado, 17 de abril de 2010

O assassino

Ele olhou para mim e eu vi a intenção clara em seus olhos. As mãos fechadas em punho. Eu podia ter evitado. Esquivado de seu gancho de esquerda, mas continuei parado. Ele merecia acertar-me a cara. Afinal, eu havia matado o amor de nossas míseras vidas. O problema nessa cena foi somente um: o canhoto tinha muita raiva nos pulsos. Seu soco me levou ao chão. Cuspi sangue, mas não gritei. Eu sorri:
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- Isso não a trará de volta. Você sabe, não sabe? Nada do que faça mudará a realidade. Eu falava com um sorriso irônico na face. A culpa pJustificaror deixá-la sozinha desprevenida em minhas mãos também não sumirá. Isso lhe assombrará para sempre.
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Ele me olhava sério agora. Não falava absolutamente nada. Eu podia ouvir sua respiração se acalmando. A raiva desaparecendo, dando lugar ao ressentimento. Eu soltei uma última risada irônica para levantar-me cambaleando. Mostrando-me fraco. Tudo parte de meu teatro. Eu queria pegá-lo desprevenido. Aproveitar-me de sua tristeza. Então, o bote da cobra. Ataquei-o com a guarda baixa. Os socos consecutivos em seu rosto foram fáceis. Ele não revidou. Minhas palavras o nocautearam antes mesmo que minha mão atingisse sua face.
Ele só me fez um último pedido antes que eu pudesse partir dali, deixando-o jogado no chão: pediu que eu me aproximasse. Eu assim o fiz. Ele estava fraco demais. Não conseguiria me acertar. Meus reflexos estavam intactos. E então a surpresa. Ele realmente não tentou nada estúpido. Apenas deu-me um beijo no rosto e disse:
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- Eu te perdoo.
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Eu deveria ter desconfiado. Aquilo não foi um perdão. Foi o doce beijo da morte. Mas, na hora, eu nem sequer percebi, tamanha foi minha surpresa com seu ato de perdão.
Ele ficou como um indigente no chão e eu, enfim, parti. Não iria matá-lo. Seu castigo seria continuar vivo com o peso da morte de nossa amada. O que eu não sabia era que em breve seria eu com a face em um sujo piso. Eu também cairia e caí.
(continua)
posted by mente inconstante at 11:02 6 comments

terça-feira, 13 de abril de 2010

Em terceira pessoa

O chão sujo era o cenário apropriado para aquela cena. Sangue escorria de sua boca. Os olhos verdes brilhavam límpidos em seu rosto. Mas o resto, todo o resto, estava sujo. Quase tão sujo quanto aquele piso. Sujo de poeira, de sangue, de vergonha e decepção. Ele se mesclava ao cenário, abandonado, sem orgulho algum no que se tornara: um homem caído humilhantemente em uma suja superfície. Caído como trapo velho. Esquecido como indigente. (Como pôde, aliás, se tornar um indigente? Como pode qualquer pessoa se tornar um esquecido não reconhecido pela sociedade?) Ele quase podia ver a baba escorrendo de sua boca, descendo por seu queixo e pescoço. Ele parecia inconsciente. Não sentia mais seu próprio corpo. Estava fraco demais e nada o motivava a levantar. Ele perdeu tudo. Tudo o que era. Tudo o que julgava importante. Ainda assim não fora capaz de revidar. Ele deu o primeiro soco no assassino de sua amada, mas não revidou o restante. A pouca força que possuía, depois do ego brutalmente ferido, se foi inteira no primeiro soco. E o que restou foi somente ele caído no chão sujo à que se mesclara.
(continua)
posted by mente inconstante at 23:59 3 comments

sábado, 10 de abril de 2010

Em primeira pessoa

Pingos d’água caíam agora, molhando a areia do deserto árido que serviu de cenário para a morte de minha amada. Que amor é esse que só resulta em morte? Como fui egoísta e deixei-a desprotegida! Como pude ter permitido que as coisas ocorressem dessa maneira? Ele já me esperava, quando eu lá cheguei. Teríamos os dois a nossa vingança. E somente um de nós sairia vivo dali. Nada importava mais sem ela ao meu lado.
(continua)
posted by mente inconstante at 18:07 6 comments